Esta exposição, bem como o Seminário que a acompanha, se insere nas investigações conceituais e metodológicas desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa Natureza Política, que têm como objetivo cartografar e qualificar as práticas socioespaciais de forma aberta e não dicotômica, buscando a pluralidade dos fatos e seus efeitos.
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Em 2018, tais investigações resultaram em um método, o Método Cartográfico Indisciplinar, construído a partir das Cartografia das Controvérsias proposta pelo filósofo e antropólogo Bruno Latour, que elenca cinco incertezas: 1) Não há grupos, apenas formação de grupos; 2) A ação é assumida; 3) Os objetos também agem; 4) Questão de fato versus questão de interesse; e 5) Escrever Relatos de Risco. Para trazer essa cartografia para o campo das lutas urbanas, o Método Cartográfico Indisciplinar propôs transformar tais incertezas em 6 perguntas disparadoras: o quê? (fatos), por quê? (figurações a respeito dos fatos), com quem? (atores humanos), com o quê? (atores não-humanos), onde?, quando?
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As respostas a essas perguntas, ao serem organizadas sobre uma linha do tempo (quando) e/ou mapas (onde), configuram uma rede complexa, a partir da qual é possível identificar várias controvérsias. Por exemplo, um fato é figurado (interpretado/justificado/analisado) de várias formas e, em torno de cada figuração (narrativas) orbitam grupos de atores (humanos e não humanos) diferentes. Entretanto, via de regra, nas fronteiras entre os grupos e os anti-grupos é possível mapear os atores (humanos e não-humanos) que estão associados a formações diferentes, o que permite a identificação da segunda controvérsia. Os desdobramentos ao longo do tempo também indicam informações importantes, sejam por meio de novas conexões ou por rupturas entre as formações de grupos. Importante ressaltar que a linha do tempo proposta não possui uma direção rumo a um futuro, e, sim, configura uma cartografia temporal que pode partir do meio e ser ampliada nas duas direções. Além disso, a linha do tempo pode ser construída em camadas, cada uma em diferentes escalas (locais, nacionais, globais), a fim de se identificar as conexões transescalares entre fatos, narrativas e atores.
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Esse método foi usado em algumas pesquisas, sendo que a primeira delas foi em 2019, sobre os territórios populares localizados na região central de Belo Horizonte. O uso do método permitiu mapear não apenas os embates entre o poder público e os movimentos sociais organizados, mas também as diferentes estratégias (uso ou não das redes sociais, parceria ou não com universidade, negociação direta ou indireta com o poder público, dentre outras) e discursos dos diversos movimentos que atuavam naqueles territórios (pautas da moradia imbricadas ou não com outras, como a preservação ambiental, o feminismo e o antiracismo). Em 2022, o mesmo método foi usado em outra investigação, tendo o rio Amazonas como eixo. Foi construída uma cartografia espacial a partir das mesmas perguntas disparadoras, resultando em conceitos ampliados sobre as materialidades e as espacialidades engendradas ali, e as formas de resistências em curso, identificadas para além das permanências dos moradores em um território com muitas disputas e atravessamentos.Em 2023, no intuito de avançar nas discussões sobre sustentabilidade ambiental, o Grupo de Pesquisa incorporou ao Método Cartográfico Indisciplinar o conceito das multiespécies e a experiência de projetos multiespécies, incorporando outro nó na construção das redes: os sujeitos não-humanos da natureza (com quem II).
Nesse mesmo ano, a partir de uma pesquisa sobre as práticas de assessoria técnica junto aos territórios populares sob conflitos socioambientais, financiada pelo CNPq, o Natureza Política se dedicou à construção de uma cartografia sobre o tema. Destaca-se que as práticas de assessoria técnica são avaliadas, em muitos casos, pelos seus resultados materiais ou pelos ganhos de autonomia dos moradores dos territórios assessorados, identificáveis pela participação dos atores envolvidos. No entanto, é sabido que tanto a participação, quanto a autonomia se dão em processos não lineares, rumo a horizontes diversos. Além disso, vale ressaltar que o entendimento do que seja emancipação socioespacial não é um consenso no meio acadêmico.
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A partir do estudo do livro “Linhas: uma breve história” de Tim Ingold, o Grupo desenvolveu uma nova cartografia, na qual os atores (humanos e não-humanos) passaram a ser diagramados não mais como nós de uma rede, mas como linhas. Nesse novo desenho, essas linhas podem ou não se enlaçar diante de narrativas fortes (por quê), resultando em fatos marcantes (o quê). Ao longo do tempo (quando), outros enlaces entre atores e narrativas produzem novos fatos. Assim como os nós são o resultado do encontro entre linhas, os fatos são resultados do encontro entre os atores e as narrativas. Ao longo do tempo, as linhas enlaçadas podem permanecer associadas ou não, em em um processo dinâmico e aberto às contingências.
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Para a exposição que aqui se apresenta, cuja realização tem apoio da FAPEMIG, foram escolhidas 7 práticas, realizadas em 7 estados diferentes do Brasil, todas elas inseridas na Rede Moradia-Assessoria, tramadas em uma tela de talagarça. Foram definidos 15 grupos de atores, sendo 7 grupos de atores humanos (movimentos sociais, moradores, poder público, universidade, igrejas, ongs e empresas), representados por uma gama de linhas beges; 4 atores não humanos da natureza (água, plantas, bichos e solo), representados por linhas em tons verdes e azuis; e 4 atores não-humanos (materiais construtivos, instrumentos jurídicos, instrumentos de interlocução, dinheiro) em linhas em tons de ocre. As narrativas, representadas por linhas em tons de rosa, enlaçam os atores e configuram os fatos importantes da Cartografia. Assim, de um lado da talagarça, estão as linhas e os enlaces, marcados longitudinalmente por uma escala temporal. No outro lado, estão os botões representando os enlaces/fatos. Como no bordado, as cartografias foram traçadas, primeiramente, em papéis milimetrados, para então serem transferidas para o tecido, e, assim, resultarem nos painéis que compõem essa exposição.
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A Cartografia com Linhas avança no mapeamento das práticas de assessoria técnica em territórios sob conflitos socioambientais, na medida em que essas práticas podem agora ser qualificadas por meio não só dos seus desdobramentos ao longo do tempo, mas também pela intensidade dos enlaces, quantificada pelo número de linhas conectadas em um dado momento. É possível também identificar os atores e as narrativas mais recorrentes, bem como aqueles e aquelas que não se conectam e de alguma forma são deixadas de fora das lutas e dos enlaces. Apresenta-se, assim, um caminho metodológico mais aberto, a partir da ideia de tramas sempre em construção, cujas linhas ora se enlaçam, ora se rompem, ora seguem soltas…
Curadoria e montagem da exposição
Marcela Silviano Brandão
Luciana Bragança
Lorena de Souza
Sayuri Shibayama
Pedro Freitas
Luana Rocha
Christino Almeida
Antônio Libânio
Pablo Bianchini
Leandro Dionísio
Consultoria e coordenação da montagem
Thiago Flores